segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Uma articulação possível entre a Psicanálise e a Psicomotricidade Relacional

Conforme mencionado em: Da psicomotricidade Relacional à Análise Corporal da Relação: Gênese de uma terapia, André Lapierre fez uso da teoria psicanalítica, especialmente a freudiana, para dar embasamento teórico à prática criada.
É relevante observar o contexto em que o didata André Lapierre estruturou essa modalidade de intervenção, momento em que a maioria dos profissionais da área “psi”, tinham a tendência em diagnosticar, impondo um saber psiquiátrico que poderia vir a rotular a criança. Ao passo que pouco se ofertava no sentido de proporcionar uma orientação à equipe pedagógica ou intervenção junto à criança que apresentava dificuldades.
Sabemos da importância conferida à ciência, sobretudo há meio século. O saber médico inquestionável, definindo o limite entre a normalidade e a loucura. Freud, inclusive precisou romper com o paradigma da neurologia da época ao introduzir a idéia de causas não evolutivas, situando a sexualidade infantil na constituição psíquica.
Em O adulto diante da criança de 0 a 3 anos, Anne e André Lapierre relatam o trabalho pioneiro em psicomotricidade relacional, cujos métodos possibilitaram a construção de um caminho capaz de conferir uma saída possível para certas crianças. Ficando evidente a importância da articulação do aparato teórico psicanalítico, dando sustentação à prática da psicomotricidade relacional.
A partir da aparentemente brincadeira livre e espontânea na companhia de adultos, propicia-se um espaço capaz de trazer a tona conteúdos inconscientes importantes.
Os conceitos freudianos situam o inconsciente como o lugar das representações.
Lacan, autor que faz retorno a Freud, propõe o inconsciente estruturado enquanto linguagem. O recalque, operação que confere a divisão psíquica, se refere a inscrição do objeto enquanto perdido, chamado de objeto a.
De acordo com a psicanálise freudiana, o inconsciente tem como característica a condensação e o deslocamento, forma pelo qual o conteúdo investido de energia pulsional pode retornar a consciência de maneira disfarçada, passando pela censura.
Inicialmente, Freud faz referência à sua topografia, dando uma dimensão de lugar para o inconsciente, pré-consciente e consciente. Ressaltando que o inconsciente não tem acesso ao consciente, se não por disfarce.
Na segunda tópica, propõe a noção de estrutura do aparelho psíquico. Onde o isso, eu e supereu estão separados por duas censuras.
O isso funciona a partir do princípio do prazer, representando o lugar das pulsões. O eu opera de acordo com o princípio da realidade, utilizando-se dos mecanismos de defesa, para regular o conflito entre as pulsões e exigência da realidade externa. Enquanto o supereu, o herdeiro do complexo de Édipo, advindo das marcas constituídas a partir das relações, internaliza as proibições impostas pela realidade exterior.
A partir da ação do recalque, o inconsciente é investido por representações da pulsão, que operam marcas no sujeito. Essas marcas são impressas pelo investimento do Outro materno, capaz de demarcar o destino da criança.
A teoria psicanalítica faz uma leitura do ser humano como alguém que já possui uma história singular antes mesmo de existir. Reconhecendo que um filho só vem ao mundo se foi desejado pelo casal. A criança passa a ter um lugar único no discurso de cada membro da família e aos poucos, vai se identificando com aquilo que os outros dizem que ela é.
A demanda do Outro Primordial na vida do infans é condição para que se estruture enquanto sujeito. O bebê precisa ser tomado como objeto de desejo da mãe ou pessoa capaz de realizar a função materna e ser capturado por esse olhar que o enlaça e concede uma possibilidade de constituição de um “eu” para o futuro sujeito.
A construção do corpo se desenvolve a medida que o filho é capturado pela imago parental, possibilitando que encontre um significante que o represente. Portanto, a constituição do psiquismo se inicia a partir das primeiras ligações com o psiquismo materno.
Inicialmente, é preciso que alguém tire a criança da homeostase, pois a tendência é a manutenção mínima de excitação. No processo primário, alucina-se o objeto de satisfação; no processo secundário, a partir da fantasia opera a realização da satisfação de modo mais simbolizado. Tanto o processo primário quanto secundário visam a redução de tensão.
O princípio do prazer precisa dar lugar ao princípio da realidade, a partir de investimentos representativos e estáveis. Os constructos freudianos apontam para a libidinização do bebê como sendo essencial ao narcisismo originário, quando a criança pode tomar-se como objeto de amor.
No primeiro tempo edípico ocorre a identificação com o objeto de desejo da mãe. Tempo onde o circuito pulsional é marcado pela busca do objeto oral, quando o bebê ativamente apodera-se, seja do seio ou da mamadeira.
No segundo tempo, chamado de passivo, o bebê erotizando-se, confere prazer a si mesmo, passando pela experiência alucinatória. No terceiro tempo, reflexivo, ocorre o fechamento do circuito pulsional. Com a repetição, a criança pode ocupar o lugar de um sujeito da pulsão assujeitado ao outro.
Visto que a pulsão não tem um objeto que a represente, estará sempre se reinventando, podendo se representar a partir de: inversão em seu contrário (sadismo em masoquismo, transformação de amor em ódio); reversão para a própria pessoa (masoquismo originário); recalque (afastamento do consciente para o inconsciente); sublimação (desvio da pulsão sexual para objetos não sexuais, como a criação intelectual).
A psicanálise lacaniana aponta a inscrição do desejo materno, a forma como a mãe maneja as zonas erógenas no corpo da criança, como porta de entrada de seu universo simbólico. Processo que se articula com a construção do romance familiar da criança.
É essencial que o filho se aliene no desejo do outro, mas que também se separe, movimento demarcado pela inscrição da castração, ou seja, da falta.
Para que a criança possa se diferenciar do outro materno, a mãe precisa poder ir e vir, podendo desejar outras coisas que não o bebê.
Desta forma, a falta se inscreve, a criança perde o lugar de falo, realiza o luto da perda de ser o representante do objeto de gozo da mãe e passa a operar com sua fantasia.
Quanto a isso, Lapierre (2005) afirma que quando a criança percebe-se diferenciada do corpo da mãe, encontra-se com a falta e sensação de perda, mas o outro já existe à distância.
"A separação dos corpos vai tornar impossível essa união no contato tônico direto, vai obrigar o encontro de outros meios substitutivos, simbólicos, para reestabelecer o "contato" com o outro.” (LAPIERRE, 2005, p.43)
O contato com o outro, será mediado pela forma como o sujeito organizou sua relação com a falta, ou seja, com o significante originário que encontrou para dar um ser para si e as possibilidades de deslizamento em sua cadeia metonímica.
Portanto, as relações são permeadas pela linguagem que tem representações únicas para cada sujeito, mas podem ser identificadas a partir das estruturas que demarcam a forma como cada sujeito se relaciona com sua forma de gozar.
O diagnóstico diferencial permite a identificação da organização do sujeito com o mundo. Instrumento de suma importância para o profissional. Sobretudo, no que tange a criança cuja faixa etária ainda é de constituição psíquica, possibilitando a detecção de pautas autistas ou perversas que poderiam vir a se cristalizar, determinando uma possível estruturação.
Na neurose, a criança é marcada pelo investimento materno enquanto falo, quando a pessoa responsável pela realização da função materna pode tomar a criança como objeto de desejo.
Contudo, é importante que esse Outro Primordial também possa desejar outras coisas, possibilitando que a criança passe pela privação e frustração, ofertando tanto sua presença quanto ausência, permitindo que a criança se encontre com a angústia de castração. Operação que marca a simbolização da castração sob forma de recalque, conferindo à submissão a lei.
Quando a criança é tomada enquanto falo, pode investir essa carga pulsional erogeinizada tomando-se enquanto objeto de amor, mas pode trocar de objeto, passando pelo processo secundário. A travessia edípica fecha o terceiro tempo através da metáfora paterna, quando há a renúncia da pulsão para viver em sociedade, interditando o real e fazendo trocas de objeto, operando de modo simbólico.
Na neurose, o sujeito pode ter um caráter racional ou histriônico, ora operando aos moldes obsessivos, ora histéricos. Havendo a operação de condensação e deslocamento do material recalcado, a fala é de cunho metafórico.
Na psicose a fala é de cunho literal, uma vez que o sentido é real, devido a ausência da operação da metáfora paterna. Ao se deparar com a angústia de castração, o sujeito produz o rechaço. Não podendo investir em nada ou ninguém que não ele mesmo, toma-se como objeto de amor. Os elementos inconscientes parecem retornar de fora para dentro, se externalizando a partir dos fenômenos elementares. No grupo das psicoses, a psicanálise situa a esquizofrenia e a melancolia.
Na perversão, a criança é investida unicamente como falo, o Outro Primordial não permite que o sujeito saia desta condição, a medida que não dá lugar a entrada do terceiro, capaz de salvar a criança do gozo mortífero da mãe. Sem a arbitrariedade materna, a criança acredita ser o objeto de desejo da mãe, e não apenas um dos objetos que a satisfaz. Neste molde de estruturação, a criança aceita a castração, muito embora a renegue. Diante do impossível do objeto, desmente a falta transgredindo a lei, ao passo que constrói a ilusão imaginária de que para ele tudo será possível.
É relevante considerar o modo de posicionamento do sujeito perante o drama universal da castração, uma vez que podemos nos deparar com traços perversos no ser humano ou mesmo sociedade.
Podemos detectar alguns traços perversos na sociedade que coloca como imperativo que o sujeito goze o tempo todo, propondo inclusive soluções químicas para problemas psíquicos. No mercado, encontram-se as drogas lícitas e ilícitas. A toxicomania ganha força à medida que se propõe a suprimir a relação do sujeito com a própria falta, operação que tende ao fracasso.
Verificamos a imposição da medicalização, criando uma demanda com o próprio excesso de oferta, impondo a recusa a qualquer estado de depressão, como se vivenciar a tristeza fosse algo a ser evitado, inclusive quando existe um luto a ser elaborado. Muitas vezes tomando a melancolia e a depressão como se fossem sinônimos.
É nessa sociedade atual, com pautas perversas, que o psicomotricista relacional se propõe a atuar, com crianças que adoecem precocemente para dar significado à falta de um sentido parental. Uma escuta afinada deve considerar tanto a criança quanto seus pais, visto que uma dificuldade em seu corpo pode se articular ao sintoma de seus pais. Portanto, observar o contexto familiar e social que a criança está inserida, é fundamental para que a linguagem corporal da criança possa ser decifrada.
O setting da psicomotricidade relacional transcorre de forma propositalmente desestruturada, mas deve haver comprometimento com a escuta genuína da criança, pois elas têm conteúdos importantes a comunicar, pela linguagem verbal ou corporal. Nesse contexto, os profissionais devem estar implicados com os objetivos propostos desta prática: tanto ao interpretar a linguagem do corpo quanto ao se preocupar com a leitura do que as crianças podem denunciar a partir do comportamento observado nas relações com outras crianças e adultos.
Considerando o posicionamento da criança frente às demandas do outro, sua idade lógica e cronológica, contexto familiar e social, propõe-se a realização de um diagnóstico diferencial capaz de conferir intervenções diretamente relacionadas às suas necessidades.
Lapierre (2005) menciona a importância do posicionamento do adulto frente à criança, conferindo-lhe um lugar diferente do que costuma receber. Como conseqüência, ela mesma poderá buscar junto aos seus familiares esta nova modalidade de relação, podendo inclusive operar mudanças significativas em seu meio familiar, visto que pode sair da posição sintomática onde era convocada a ocupar.
Nos casos em que a criança encontra-se alienada em si mesma, mas ainda aceita ser tomada como objeto de desejo do outro, há possibilidades de uma resposta frente ao enlaçamento via olhar e desejo do Outro. Ou ainda, no caso de crianças que recusam a lei, mas ainda tem condições de equacionar a operação da castração, podem sair do imperativo que não confere outra possibilidade se não a de gozar a qualquer preço.
No que tange as estruturas já definidas, é relevante considerar a condição de cada sujeito, relacionando-se e intervindo de acordo com a compreensão do profissional perante determinada constituição psíquica. Na maioria dos casos, há possibilidades da promoção de mudanças subjetivas importantes, contanto que esta ética seja respeitada.
O anexo “relacional” da psicomotricidade confere status privilegiado à relação entre criança e adulto. Ou como nomeia a psicanálise lacaniana: o infans e Outro Primordial. É relevante reconhecer que se a criança demonstra dificuldades ao se relacionar com o outro, existe outra via de estruturação psíquica possível, desde que antes dos seis anos de idade.
Nesse sentido, a psicomotricidade relacional pode ter o privilégio de realizar a detecção precoce, endereçando alguns casos a um psicólogo ou outros profissionais da Instituição onde atua, mas também fazendo uso de seu setting de trabalho, acolhendo a demanda da criança e pontuando a partir da linguagem corporal.
A partir da linguagem simbólica do corpo, a psicomotricidade relacional pode funcionar como uma ferramenta capaz de atuar em creches e escolas, podendo acessar o infans ainda em fase de estruturação psíquica, portanto, passível de mudanças significativas.
Portanto, a compreensão dos efeitos do outro na subjetivação da criança é condição sine qua non, para atuar frente a uma clientela que também pode fazer uma demanda, que pode ser acolhida pelo profissional que atua nas Instituições com este propósito de prevenção e em alguns casos, também de reabilitação.


REFERÊNCIAS

LAPIERRE, A. Da psicomotricidade relacional à análise corporal da relação: gênese de uma terapia. Curitiba: UFPR - CIAR, 2002.

LAPIERRE, A. & LAPIERRE, A. O adulto diante da criança de 0 a 3 anos: psicomotricidade relacional e formação da personalidade. Curitiba: UFPR-CIAR, 2005.







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